Assimetria informacional prejudica segurado e seguradora, diz Daniel Gelbecke
Daniel Barreto Gelbecke, diretor jurídico da Newe Seguros, com uma trajetória de 25 anos no setor, oferece nesta entrevista insights valiosos sobre a intersecção do direito e dos seguros.
Especializado em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV Direito Rio e cursando o mestrado em Direito, Justiça e Impactos na Economia pelo Cedes, em São Paulo, Gelbecke diz que “há diversas falhas de mercado que interferem no setor de seguros”. “Com destaque para a assimetria informacional, que prejudica tanto o segurado quanto a seguradora, a insegurança jurídica e a complexidade do ambiente regulatório.”
Na conversa com esta coluna, aborda, além de temas como os desafios regulatórios, a influência da tecnologia nas operações jurídicas e a contribuição do departamento jurídico para a gestão de riscos e desenvolvimento de novos produtos.
Também analisa a prevenção e gestão de litígios, antecipa as tendências que moldarão o setor de seguros nos próximos anos e oferece conselhos práticos para jovens profissionais que aspiram a posições de liderança jurídica.
Leia abaixo a entrevista:
Seguros Contemporâneos — Daniel, como você descreveria o papel do departamento jurídico na estratégia geral de uma seguradora?
Daniel Barreto Gelbecke — Além da busca pelo lucro, que é comum a todas as empresas, os objetivos estratégicos das seguradoras atualmente incluem uma variedade de ações. Elas visam alcançar e impactar pessoas, prevenir e mitigar os riscos do negócio — especialmente os legais e regulatórios —, adotar práticas de sustentabilidade, e promover condutas que reforcem a governança, valorizando a transparência, equidade e responsabilidade corporativa. Há também um esforço para preparar documentos adequados, que observem as normas aplicáveis e respeitem as partes interessadas: clientes, acionistas, colaboradores, administradores, fornecedores e autoridades.
O departamento jurídico é essencial para alcançar esses objetivos estratégicos. Atua como um aliado constante de todas as áreas da companhia, especialmente as de negócio, fornecendo soluções jurídicas. Essas soluções, pautadas na segurança jurídica, na prestação de informação ágil e confiável, no gerenciamento de riscos e na tentativa de reduzir falhas de mercado, viabilizam as operações de maneira geral pelo caminho mais eficiente para a empresa.
A atuação do departamento abrange desde questões societárias e regulatórias, passando pela orientação normativa, preparação de documentos, políticas, contratos e clausulados, apoio às áreas de negócio, regulação de sinistros e outras, até a recomendação ou validação de práticas negociais ou operacionais. Alcança ainda as negociações, disputas e processos administrativos, arbitrais e judiciais, demonstrando a ampla envergadura de sua atuação e sua importância na estratégia geral corporativa.
Seguros Contemporâneos — Quais são os maiores desafios regulatórios enfrentados pelo setor de seguros atualmente?
Gelbecke — Há diversas falhas de mercado que interferem no setor de seguros, com destaque para a assimetria informacional, que prejudica tanto o segurado quanto a seguradora, a insegurança jurídica e a complexidade do ambiente regulatório.
O setor enfrenta desafios que inibem seu desenvolvimento, como o limitado conhecimento da sociedade sobre o seguro privado — que enfrenta certo preconceito — e sobre o gerenciamento de riscos, a baixíssima penetração do seguro na sociedade, que tem penetração limitada no PIB nacional, bem como dificuldades na distribuição de produtos de seguro e no alcance à população em geral.
Podem ser mencionados, ainda, práticas oportunistas e fraudulentas contra o mercado de seguros, o fato dele ser um ambiente altamente regulado e fiscalizado, cheio de normas que geram altos custos regulatórios e riscos legais associados.
Considerando que, em teoria, a regulação deveria corrigir falhas de mercado, reduzir custos de transação e contribuir para uma mudança comportamental na sociedade, incentivando boas práticas, espera-se que os desafios mencionados sejam efetivamente enfrentados e mitigados por meio de uma regulação eficiente, harmonizada com a livre iniciativa e a liberdade econômica.
Nessa linha, deveria haver medidas regulatórias contribuindo para a simplificação normativa, o respeito à alocação de riscos definida pelas partes contratantes, a redução da burocracia e da intervenção sobre o exercício da atividade econômica, a adoção de tecnologias, processos e modelos de negócio inovadores, a ampliação do conhecimento sobre seguros privados e gerenciamento de riscos e o aumento da concorrência.
Todavia, o receio é de que, na verdade, a regulação recaia na via já conhecida de introdução de novas normas, políticas e exigências, mudanças regulatórias nem sempre eficientes, maior complexidade, reforço de práticas de fiscalização, e a necessidade de constantes adaptações da atividade negocial e operacional dos agentes.
Seguros Contemporâneos — De que maneira a tecnologia está impactando as operações jurídicas na sua empresa?
Gelbecke — Decisiva e positivamente, permitindo a redução do tempo gasto com atividades de gestão e controle e com tarefas manuais e repetitivas, e abrindo espaço maior para o tratamento de questões mais complexas e estratégicas. Trata-se de transformação e adaptação constantes que permitem a contínua redução de custos transacionais, tais como os de busca de informação, de monitoramento, e de cumprimento de contrato.
A tecnologia nos oportunizou a existência de processos eletrônicos, capturas automatizadas de distribuições e de publicações, assinaturas digitais com e sem certificado digital, plataformas de gestão e controle de processos, de contratos, de procurações, de conciliação e mediação on-line e de governança corporativa. Ferramentas de jurimetria e de gestão e controle de desempenho, reportes automatizados, registro de dados e documentos via blockchain são agora partes integrantes de nossas operações. Merece uma menção também a inteligência artificial generativa, cada vez mais capacitada e com potencial para gerar impactos significativos.
Seguros Contemporâneos — Como o departamento jurídico contribui para a gestão de riscos da seguradora?
Gelbecke — A gestão de riscos na seguradora é significativamente influenciada pelo departamento jurídico, que desempenha um papel central na identificação, tratamento, prevenção e mitigação dos riscos. Esse departamento se concentra especialmente nos riscos jurídicos e regulatórios. Os primeiros relacionam-se com as possíveis perdas advindas de litígios, enquanto os últimos dizem respeito às perdas provenientes de multas e sanções administrativas, que podem surgir da não conformidade com as leis e regulações do setor.
A relevância destes riscos é sublinhada por um estudo da KPMG que envolveu cerca de 300 grandes empresas abertas e identificou quase 8.000 fatores de risco, com os riscos jurídico e regulatório emergindo como alguns dos mais citados. Isso ressalta a preocupação do setor com a insegurança jurídica e a eficácia do sistema judiciário.
Além do foco nos riscos jurídicos e regulatórios, o departamento jurídico apoia a seguradora de várias outras maneiras. Fornece suporte legal e orientação normativa, desenvolve políticas e programas de treinamento em governança corporativa e conformidade, elabora contratos e produtos de seguro, e combate a inadimplência relacionada a prêmios e ressarcimentos. Essas atividades são essenciais para o manejo eficiente dos diversos riscos associados ao cotidiano operacional da seguradora.
Seguros Contemporâneos — Como vocês abordam a prevenção e gestão de litígios?
Gelbecke — Nossa estratégia para a prevenção e gestão de litígios é abrangente e se inicia com a formação de equipes altamente capacitadas, experientes e comprometidas em todas as áreas da companhia. Elas asseguram que nossas operações estejam em conformidade com contratos, normas, políticas e metodologias, garantindo assim resultados assertivos e evitando desconfianças e litígios.
O departamento jurídico e de compliance tem um papel importante nesse processo, promovendo a conformidade legal e regulatória, o que reforça a segurança e o alinhamento com as partes interessadas.
Importante destacar a nossa preocupação com a redução da assimetria informacional entre as partes, e com a prevenção da seleção adversa e risco moral. Trabalhamos para tornar documentos, inclusive clausulados, mais acessíveis e visuais, e adotamos essa prática também nas nossas defesas e manifestações em processos, buscando concisão e clareza na comunicação.
Proativamente, monitoramos a evolução da jurisprudência e as tendências legais para identificar e prevenir problemas, ajustando nossas práticas negociais e operacionais conforme necessário.
Valorizamos as soluções amigáveis e a negociação de acordos, sejam judiciais ou extrajudiciais, sempre que recomendáveis, e recorremos a plataformas de resolução de disputas, como conciliação ou mediação on-line, para gerir litígios de forma eficaz e econômica. Entretanto, quando nos deparamos com litígios inevitáveis nos quais o segurado reivindica algo sem fundamentação contratual ou outro tipo de respaldo, implementamos uma defesa sólida para assegurar a proteção eficaz dos interesses da seguradora e do fundo mutual que ela administra.
Seguros Contemporâneos — Como o departamento jurídico participa do desenvolvimento de novos produtos de seguro?
Gelbecke — Em apoio à área de produtos da seguradora, o departamento jurídico participa fornecendo a análise da viabilidade legal do produto (e do enquadramento nas regras e ritos normativos e regulatórios), e confeccionando ou revisando os clausulados para garantir que o documento não somente expresse as matérias pretendidas pela área de produtos e demais áreas eventualmente envolvidas, como também observe plenamente a legislação, suas exigências e restrições (conformidade legal e regulatória).
Além disso, o departamento jurídico se ocupa da formalização de contratos com parceiros, consultores, fornecedores, corretores e outros que porventura atuem em alguma etapa do fornecimento do produto no mercado. Também apoiamos o processo de validação e aprovação do produto, quando necessário, junto à Superintendência de Seguros Privados (Susep), entre outros órgãos, com o objetivo de proteger os interesses da seguradora.
Seguros Contemporâneos — Quais tendências você prevê que terão impacto significativo no setor de seguros nos próximos anos?
Gelbecke — Além da crescente adoção de critérios de sustentabilidade no setor de seguros e mais particularmente na cadeia de fornecimento do seguro, acredito que, nos próximos anos, veremos cada vez mais produtos de seguro paramétrico, seguros embarcados (embedded insurance), seguros cibernéticos (inclusive para cobrir prejuízos causados pelo uso da inteligência artificial), seguro de riscos de transação de M&A, além de produtos voltados ao público mais vulnerável e desassistido ou a mercados atualmente desatendidos.
Outra tendência importante será a contínua inovação tecnológica. A adoção e expansão de tecnologias como blockchain, inteligência artificial generativa e Internet das Coisas (IoT) revolucionarão as operações das seguradoras, abrangendo desde a subscrição de riscos e precificação até a regulação de sinistros, gerenciamento de riscos e atendimento ao cliente.
Acredito, também, na ampliação de ferramentas de proteção de dados e privacidade, impulsionada pelo uso de dados digitais no setor de seguros, e de análise de dados, viabilizando o conhecimento mais apurado e fundamentado pelo setor de seguros, a melhoria das técnicas de gerenciamento de riscos e a gestão mais adequada dos variados temas.
Seguros Contemporâneos — Quais dicas você daria para jovens que gostariam de alcançar o cargo de diretor jurídico de uma grande seguradora?
Gelbecke — Para aqueles que aspiram ao cargo de diretor jurídico em uma grande seguradora, é importante reconhecer que não existe uma fórmula única ou um caminho predefinido para o sucesso. A trajetória pode variar consideravelmente dependendo de cada indivíduo, contexto e conjunto de experiências.
No entanto, alguns elementos são frequentemente comuns nas carreiras de sucesso nessa área. Recomendo buscar ativamente o aprendizado contínuo e o desenvolvimento profissional, aproveitando a mentoria de profissionais experientes no setor. É importante agir com responsabilidade, ética e integridade, além de adquirir um entendimento profundo do negócio de seguros, mantendo-se informado sobre as tendências e inovações do setor.
Construir uma sólida base de conhecimento jurídico, particularmente em áreas como direito securitário, regulatório e societário, é fundamental. Também é vital desenvolver uma visão estratégica alinhada aos valores e objetivos da empresa, habilidades de liderança e comunicação eficaz. Por fim, ser flexível e resiliente ajudará a navegar e superar os desafios e mudanças constantes no ambiente corporativo e regulatório.
Seguros Contemporâneos — O que nunca te perguntaram e gostaria de responder?
Gelbecke — Pergunta interessante. Se me permite, pretendo fazer dois comentários, um sob o ponto de vista profissional e outro pessoal.
No aspecto profissional, manifesto o desejo de ver a contínua e crescente adoção da análise econômica do direito (AED), da utilização de dados e das neurociências aplicadas ao direito. Estes campos oferecem insights profundos sobre a avaliação da realidade, o entendimento dos fatos, as consequências das ações legais e o comportamento humano, contribuindo para uma abordagem mais eficiente e sofisticada na resolução de questões sociais. Entendo que esse é um movimento que tem se intensificado e deve impactar cada vez mais a sociedade.
Sobre a AED, um exemplo é a recente contratação pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luis Roberto Barroso, de um economista para auxiliar na compreensão de casos, elaboração de votos e na pauta de julgamentos do tribunal.
Já no aspecto pessoal, talvez possa compartilhar a imensa alegria que é poder acompanhar o desenvolvimento dos meus filhos; vê-los curtindo em sua pureza cada descoberta, conquista e gesto, desde os mais singelos, especialmente aqueles que um adulto nem sequer nota ao executar, mas que para uma criança representa toda a felicidade.
Fonte: ConJur