Contratos públicos de seguro-garantia mudam de patamar
Associado tradicionalmente à cobertura de obras públicas de grande porte, o seguro-garantia tem crescido nos dois últimos anos em processos judiciais, em sua maioria nas áreas administrativa, tributária e trabalhista, que hoje representam cerca de 80% do volume de prêmios, relação que deve permanecer ao longo dos próximos meses. No médio prazo, a expectativa do setor é em relação à retomada do aquecimento da economia, na medida em que avancem os investimentos previstos no Marco do Saneamento (Lei nº 14.026/2020), com estimativa do governo de R$ 120 bilhões até 2033, com ênfase na formação de Parcerias Público-Privadas (PPPs).
Em paralelo, haverá a entrada em vigor da Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) em substituição à Lei nº 8.666/93, medida prevista para começar em abril, mas postergada para 1º de janeiro de 2024 pela falta de tempo dos gestores públicos (principalmente as prefeituras) na adaptação aos novos termos. Para as seguradoras, a principal mudança será a obrigatoriedade de garantias nos contratos públicos do atual patamar de 5% para até 30% em obras com valores acima de R$ 200 milhões.
Neste período de transição, as empresas licitantes podem optar por fechar suas apólices pela lei antiga ou se adaptarem à nova legislação. A Lei nº 8.666/93 não exigia especificamente a contratação de um seguro-garantia de 5% da obra. A cobertura poderia ser feita por caução em dinheiro, fiança bancária ou títulos de dívida. A opção pelo seguro-garantia se tornou mais atrativa devido ao custo de a apólice entrar no balanço patrimonial como despesa de seguro, enquanto a fiança bancária exige a imobilização de ativos (imóveis, máquinas e outros bens).
Para o advogado Carlos Ximenes, sócio do escritório Castro Barros Advogados, o novo Marco de Licitações é um avanço, o que não significa que haverá uma adesão imediata das seguradoras na cobertura do teto de 30%. “Eu defendo um modelo de cobertura de até 100% da obra, como existe nos Estados Unidos. Se pensarmos em uma obra de R$ 200 milhões com cobertura de 30%, os R$ 60 milhões talvez não garantam a conclusão dos serviços, em caso de inadimplência da construtora tomadora do seguro.”
Há também o mecanismo do step in, ferramenta introduzida na nova lei, pela qual a seguradora se torna interveniente anuente, ou seja, passa a fazer parte do contrato principal. Nessa situação, a seguradora é obrigatoriamente comunicada em caso de aditivos ou mudanças ao longo da obra. Isto é visto como positivo pela responsabilidade no acompanhamento e na fiscalização das etapas da construção, mas passa a ter responsabilidades que até então não lhe cabiam, como a exigência de indenizar o poder público e concluir a obra até mesmo no caso do tomador (construtora) apresentar inadimplência no pagamento das parcelas da apólice. “É um risco adicional que a seguradora terá de avaliar no momento de calcular o prêmio”, diz Ximenes.
Para as seguradoras, há dúvidas a serem esclarecidas e que não constam no texto da lei. Para Rafael Bertramello, diretor de subscrição da Chubb Brasil, a introdução do step in será um aprendizado para o mercado. “Mas não está definido como será o passo a passo até a contratação de uma nova construtora para conclusão do projeto e quais medidas serão adotadas quando o custo de retomada da obra ultrapassar o limite da apólice.”
Com 13 anos de vida e líder no ramo desde 2017, a seguradora mineira Pottencial tem hoje nos seguros judiciais o seu carro- chefe e pretende crescer em obras públicas e licitações. “Estamos em vários projetos relevantes de infraestrutura, como apoiando alguns contratos com o metrô de São Paulo e em concessões de aeroportos, estradas, portos e linhas de transição”, afirma Carlos Quick, vice-presidente da Pottencial. Em 2022, a seguradora participou, em parceria com a XP Infra (fundo de infraestrutura do grupo XP), da concessão dos aeroportos de Campo de Marte (SP) e Jacarepaguá (RJ), com uma proposta de R$ 141,4 milhões. O valor da cobertura da apólice foi de 5%.
Segundo o relatório anual da Superintendência de Seguros Privados (Susep), o ramo de seguro-garantia (público e privado) fechou 2022 com R$ 3,473 bilhões em prêmios, o que pode parecer insignificante quando comparado dentro do volume total de R$ 355,96 bilhões de prêmios arrecadados nos diversos ramos – o seguro de pessoas foi responsável por R$ 197,47 bilhões e o de autos respondeu por R$ 51,05 bilhões, por exemplo. Os números de 2022 apontam um leve crescimento ante 2021, mas revela uma gradativa curva de alta se comparado ao ano de 2012, que apresentou um total de R$ 757,92 milhões em uma época em que os seguros judiciais eram incipientes.
Por envolver risco de crédito, os contratos de seguro judicial costumam envolver empresas com faturamento anual a partir de R$ 100 milhões, mas o setor detecta oportunidades junto a empresas médias, na faixa de R$ 50 milhões de faturamento anual. Em busca deste nicho, desde o ano passado, o grupo XP incluiu em sua plataforma todas as seguradoras que operam no ramo. A receptividade foi acima das expectativas, afirma Bruno Autran, head de seguros pessoa jurídica da XP. “Descobrimos que empresas que costumavam fazer fiança bancária desconheciam a possibilidade de uso do seguro-garantia.” Embora esteja acessível às empresas em geral, Autran diz que a maioria dos clientes já possuía relação com a instituição.
No início do ano, uma decisão do governo federal em relação ao sistema de julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, deve ocasionar uma corrida rumo às seguradoras em busca do seguro-garantia. Por meio de uma medida provisória, foi restabelecido o chamado “voto de qualidade”, que prioriza a posição dos auditores fiscais em caso de empate. Até 2020, era este o modelo, mas o então presidente Jair Bolsonaro extinguiu o voto de qualidade e os julgamentos que terminavam empatados resultavam em vitória das empresas autuadas, o que na prática acarretava perdas significativas para o erário público.
Estima-se que haja cerca de 93 mil processos na fila do Carf, com mais de R$ 1 trilhão a serem discutidos. A maioria envolve pequenas empresas, mas as seguradoras estão mesmo de olho em 162 processos de grandes companhias, que representam R$ 453 bilhões em jogo. A expectativa é que o Carf imponha um ritmo mais veloz nos julgamentos em razão de a medida estar dentro do empenho do governo Lula em promover uma reforma administrativa e tributária que traga mais recursos aos cofres públicos.
Nesses casos, o setor aposta que as empresas envolvidas em litígios tributários e aduaneiros busquem o seguro-garantia como alternativa mais em conta em relação às fianças bancárias, cauções, depósitos judiciais e penhora de bens. Em média, o seguro-garantia judicial custa entre 0,2% e 3% ao ano, conforme o risco de crédito do tomador, com prazo médio de três anos. “É um custo dez vezes menor do que o dinheiro, comparando com taxa Selic de 13,75%”, afirma Rodrigo Abdalla Brandão, gerente da área de seguro-garantia da Sompo Seguros.
Como o voto de qualidade tende a ser favorável ao poder público, o caminho natural será a judicialização por parte das empresas derrotadas, que deverão ingressar com um recurso judicial contra a decisão e buscar o seguro-garantia por razões econômicas, prevenindo-se de uma eventual execução quando transitado em julgado. “É muito provável que haverá uma ampla procura do seguro-garantia judicial, por ser uma proteção fundamental para a solidez das empresas”, prevê Cristina Tseimatzdis, diretora de garantia e linhas financeiras da corretora global WTW Brasil, novo nome da Willis Towers Watson.
Na pandemia, as seguradoras tiveram aumento na demanda por seguros judiciais na Justiça Trabalhista, medida que era permitida dede 2017, com a alteração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no governo do ex-presidente Michel Temer. “Emitimos mais apólices no ano passado, mas os tíquetes são baixos”, diz Átila Santos, superintendente de linhas financeiras da Newe Seguros. Nesta modalidade do seguro judicial, a apólice determina um valor a ser garantido, que pode ser por meio de depósito recursal trabalhista ou garantia do juízo, em situações em que o processo se encontra na fase de execução. Assim como nos demais tipos de seguro judicial, as seguradoras buscam empresas mais estruturadas para a emissão de apólices, embora Santos avalie que haja espaço para buscar companhias de menor porte. “Uma empresa com faturamento anual de R$ 5 milhões não terá gastos anuais trabalhistas expressivos. É possível abrir o leque de oportunidades, com contratos que prevejam sinistralidades com maior frequência, mas com menor severidade em valores, com taxas competitivas entre as seguradoras”, diz.
Hoje, o mercado de seguro-garantia é operado por 37 seguradoras, controlado majoritariamente por um seleto grupo formado por multinacionais, como Chubb, Tokio Marine e Swiss Re, ao lado de companhias nacionais, casos da Pottencial, da paranaense Junto e do BMG. Desde janeiro deste ano, encontra-se em vigor a Circular nº 662, da Superintendência de Seguros Privados (Susep), que estabelece novas normas na formulação das apólices e simplifica o clausulado, que era alvo de críticas por ser hermético e prolixo. O objetivo da Susep é permitir mais flexibilidade nos contratos, simplificando a distinção entre as cláusulas gerais (que eram padronizadas), as cláusulas especiais e as particulares em um único clausulado. Com este modelo, as seguradoras poderão customizar a apólice conforme a necessidade do cliente, detalhando pontos como os termos para cumprimento de contrato caso o contratado não cumpra suas obrigações. “No ramo de seguro-garantia, as companhias são pouco arrojadas e têm pouca ousadia para lançar uma inovação sozinhas”, diz Ximenes, do escritório Costa Barros Advogados.
Em tese, diz Tseimatzdis, da WTW Brasil, a flexibilização permitida pela Circular nº 662 pode ser a porta de entrada não apenas para as pequenas e médias empresas. “Sou entusiasmada pela possibilidade de popularização do produto. Nos Estados Unidos, há seguros voltados para pessoas físicas. No Brasil, ainda estamos longe, embora a circular permita a possibilidade de um lojista com cinco funcionários contratar uma apólice de seguro trabalhista. Hoje, esse produto não existe”, diz. Por sua vez, Autran, da XP, não vê perspectivas na popularização do produto, pelo menos em curto prazo. “Os seguros judiciais começaram a ser aceitos há poucos anos e há muitas demandas represadas nos grandes e médios clientes. Desconheço planos de alguma seguradora em desenvolver produtos mais populares.”
Nos seguros tradicionais, a Circular nº 662 está sendo aplicada, garante Caroline Ayub, superintendente de linhas financeiras da Tokio Marine. “Nossas apólices já estão adaptadas à circular, principalmente na questão de não cobrir obrigatoriamente todas as etapas do contrato. Com o fim da padronização das apólices, ficou mais fácil compreender as coberturas”, diz a executiva, destacando que os clientes são construtoras e fornecedores de equipamentos, tanto do setor público como privado.
Há dois anos no Brasil, a seguradora chilena Avla busca inovar no ramo e atingir pequenas e médias empresas. No início do ano, a seguradora trouxe ao país o seguro Fast Claim, uma modalidade de seguro performance e adiantamento de pagamento com condições e coberturas flexíveis, de acordo com a nova circular. “É uma inovação de sucesso no mercado chileno”, afirma Felippe Astrachan, CEO da Avla. Nos próximos meses, a seguradora pretende entrar com o seguro-garantia em setores considerados promissores, como infraestrutura e habitação popular.
O mercado acompanha também oportunidades no setor de energia, que prevê investimentos em parques solares e eólicos nos próximos anos. Segundo Brandão, da Sompo, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) tem exigido o seguro-garantia para os futuros projetos de geração e também para distribuidoras e comercializadoras para que as metas do Plano Decenal de Expansão sejam cumpridas. “Antes era um clausulado padrão. Agora, cada contrato tem características próprias.”
Fonte: Valor Econômico
Publicado em: Mercado Segurador